Explosão em conjunto habitacional no Rio de Janeiro é mais uma tragédia provocada pela inobservância a normas. Do vazamento de gás ao rompimento de barragem, descaso com as regras provoca dezenas de mortes por ano.


No dia 4 de abril, moradores do bairro Coelho Neto, subúrbio do Rio, acordaram, sobressaltados, às 4h30 com o barulho de uma forte explosão. Dado o histórico de violência da região, alguns pensaram que fossem tiros ou carros em fuga. Para os que estavam mais perto do estrondo, foi um terremoto. A explosão ocorreu no subsolo de um dos 86 prédios do conjunto habitacional Fazenda Botafogo. O chão do primeiro andar, que tinha oito apartamentos, cedeu imediatamente. Cinco pessoas morreram, entre elas uma adolescente de 13 anos, e nove ficaram feridas. Ao longo da semana, as investigações indicaram que a explosão foi provocada por vazamento de gás. O conjunto de irregularidades já detectado deixa claro que não se trata de acidente: vidas foram perdidas ou modificadas para sempre em decorrência de uma sucessão de erros provocados, em síntese, por aquilo que se apelida 'jeitinho brasileiro' - a tradicional habilidade nacional de burlar regras. Mais uma tragédia para a lista daquelas que poderiam ter sido evitadas.

Por baixo do conjunto habitacional, construído na década de 70, passa uma tubulação antiga de gás natural operada pela Companhia Estadual de Gás (CEG). "A tubulação tem cerca de 40 anos. Provavelmente, ela não foi feita dentro de uma canaleta de concreto, que não deixa o gás vazar. O terreno, que é ruim, pode ter sucumbido e atingido os tubos", afirmou o engenheiro civil José Schipper, do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA-RJ), que fez visitas ao local. Outra irregularidade. Metade dos quarenta apartamentos do prédio não era abastecido por gás canalizado, mas botijão. A presença dos dois sistemas de abastecimento em um mesmo local é proibida por lei, assim como botijão de gás dentro do apartamento. "Não pode ter puxadinho com algo tão perigoso. Isso é uma coisa seríssima", disse Schipper.

A displicência cresce sob o olhar complecente do poder público. E, não raro, resulta em tragédias. Outro exemplo recente é o do rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco em Mariana (MG). O motivo: falhas no monitoramento do nível da água, equipamentos com defeito e concessão de laudos de estabilidade mesmo com a constatação de que havia o risco de ruptura. O sistema de alerta em casos de emergência ainda falhou, e as pessoas do vilarejo de Bento Rodrigues só perceberam o tsunami de lama quando era tarde demais. O saldo: dezenove mortos e danos ambientais ainda incalculáveis.

Em janeiro de 2013, o país acordou em choque: na madrugada do dia 27, um incêndio ceifou 242 vidas na Boate Kiss, em Santa Maria (RS). O estabelecimento funcionava normalmente sem o alvará de prevenção a incêndios dos bombeiros, sem rotas de fuga suficientes e com extintores inoperantes. O teto ainda era revestido com uma espuma inflamável - obviamente, mais barata do que o material adequado. Era a combinação perfeita para provocar um incêndio, que começou com a fagulha de um fogo de artifício solto no local - embora destinado a locais abertos, ele era mais barato que o recomendado para locais fechados. Resume o professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP) Paulo Silvino: "Quando o Estado não é capaz de fiscalizar corretamente, ele acaba estimulando as pessoas a continuarem displicentes. Predomina um sentimento de impunidade. As regras e as sanções não tem a dureza e rigidez que deveriam ter".

"Na cultura brasileira há um certo amolecimento em relação à preocupação com o coletivo. Muitas pessoas veem o público como se fosse de ninguém. Na verdade, é o contrário: o público é de todos", completa. Segundo o sociólogo, esse sentimento de descaso é fruto do processo histórico de formação do Brasil. Ele cita os casos da Inglaterra e da Alemanha, onde o Estado teria surgido do meio da sociedade. "Por isso, eles têm uma clareza maior das suas responsabilidades, do primado da lei e da Constituição". Segundo ele, no Brasil, o processo foi inverso. "Aqui o Estado nasceu descolado da sociedade civil. E um Estado que não emana dela não a tem como principal interesse", afirmou.

Revolta - Após a explosão no Rio, os moradores da região se indignaram. Estavam há quase um ano reclamando com a CEG do forte cheiro de gás que impregnava o bairro. A gerente de gestão da CEG Cristiane Delart disse ao site de VEJA que a empresa mandou equipes ao local para atender quatro chamados no local, em março, classificados como "de rotina". Segundo ela, em nenhum deles foi identificado qualquer anormalidade. "Fizemos também uma vistoria completa na rede no dia 21 de dezembro e não encontramos nenhum vazamento", disse ela.

Um morador do conjunto habitacional, que não quis se identificar, disse que a companhia realizava há mais de um mês uma obra num prédio que fica atrás da unidade que sofreu a explosão. "A obra estava num ritmo bem lento. Depois da explosão, a CEG apareceu aqui e tampou todos os buracos no mesmo dia", disse o morador, que enviou a foto (abaixo) do local. Cristiane confirmou a intervenção, mas disse que ela não tem nenhuma relação com o incidente.

Tubulação de gás encanado, do Conjunto habitacional Fazenda Botafogo, em Coelho Neto, zona norte do Rio de Janeiro (RJ)
O Rio é palco de pelo menos uma explosão por vazamento de gás a cada ano - isso sem contar as detonações em bueiro. Em maio de 2015, um apartamento em São Conrado foi aos ares por causa da má instalação da tubulação de gás em um fogão - o morador morreu após ter 50% do corpo queimado. Em novembro de 2014, duas crianças morreram após um cilindro de Gás Natural Veicular (GNV) estourar em um posto de gasolina no bairro Colégio. Em outubro de 2012, uma explosão na padaria de um supermercado, em Irajá, deixou sete pessoas feridas. Em novembro de 2011, um estouro aconteceu no restaurante Filé Carioca, no centro do Rio, por causa de acúmulo de gás em ambiente fechado - quatro pessoas morreram e 17 ficaram feridas.

Tão comum como as explosões por gás, são o desabamento de obras em construção no Brasil. Em agosto de 2013, dez operários morreram após a estrutura de um prédio ruir em São Mateus, Zona Leste de São Paulo. As razões para o acidente foram muitas: a estrutura tinha um andar a mais do que previa o projeto técnico, não havia o controle do material usado nem efetivo suficiente para tocar as obras. Em julho de 2014, erros de cálculo na planta e redução do material de contrução adequado levou a baixo um viaduto em Belo Horizonte. Um micro-ônibus, um carro e dois caminhões foram esmagados pela estrutura, matando duas pessoas.

As explicações sobre o que realmente causou a explosão na Fazenda Botafogo só serão respondidas com as conclusões do laudo técnico da Polícia Civil, que deve sair em 30 dias. O delegado Fábio Pacífico, do 40º Distrito Policial, afirmou que, seja quem for responsabilizado, este deverá responder por homicídio culposo (quando não há intenção de matar). "A pessoa será responsabilizada por não ter cumprido um dever objetivo e pela não observância de alguma regra técnica", disse ele. Como de hábito, as regras só ganham a devida importância depois das tragédias.
fonte veja.abril

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