Ancoragens – tudo começa aqui
Podemos seguramente dizer que a parte mais importante de todo o universo da verticalidade é a ancoragem. Os melhores e mais seguros equipamentos e equipes bem treinadas só farão sentido se os pontos de ancoragem forem bem avaliados. Todo o resto falhará se a ancoragem falhar.
O ponto de ancoragem (PA) deve ser escolhido e analisado de forma criteriosa por alguém experiente e deve suportar a carga mais alta prevista para ele, como por exemplo, uma queda fator 2, ou duas pessoas ancoradas ao mesmo tempo (socorrista e vítima). Porém, uma regra não pode ser deixada de lado: o conceito de Fator de Segurança.
O Fator de Segurança funciona da seguinte forma: tanto os equipamentos utilizados em altura quanto os pontos de ancoragem devem suportar 15 vezes a massa prevista para eles, conforme segue abaixo:
MASSA USADA COMO REFERÊNCIA= 100 kg
(peso de um adulto com equipamentos – conforme norma ANSI e ABNT)
FATOR DE SEGURANÇA= 15
100 X 15 = 1.500 Kg

Ou seja, 1.500 kg (por ponto, individual) ou 2.200 kg (por ponto, até duas pessoas) é a carga mínima de ruptura que qualquer ancoragem deve possuir. Partindo do conceito que uma corrente é tão forte quanto o elo mais fraco, não adianta você possuir equipamentos que atendam normas exigentes se o PA não for tão resistente; dificilmente vamos ter em mãos um Dinamômetro (equipamento utilizado em testes para aferir carga de ruptura de equipamentos como cordas, etc) para avaliar se o PA é robusto ou não, portanto a experiência, as técnicas empregadas e o bom senso devem fazer parte do perfil do profissional que irá montar as ancoragens, seja de um simples rapel ou de uma operação de salvamento.

Um ponto de ancoragem ideal deve possuir as seguintes características:
ser robusto e resistente (geralmente parte estrutural em alvenaria, metal, madeira, árvores sadias ou pontos criados pelo homem, chumbados em rocha ou concreto);
ser fixo e imóvel (não faz sentido se ancorar em um ponto que possa se movimentar); no caso da utilização de veículos, cuidados adicionais devem ser tomados tais como: calçar no mínimo duas rodas, manter freio estacionário acionado, deixar marcha contrária à direção da carga acionada, condutor deve entregar a chave para outra pessoa (geralmente o comandante da emergência) e escolher pontos estruturais (rodas, chassi, engates e longarinas);
ser envolvido com proteções para cantos-vivos (evitando desgaste prematuro ou danos irreparáveis nas cordas e fitas);
estar alinhado com a direção da carga, evitando o efeito pêndulo caso ocorra queda;
ser avaliado e inspecionado por pessoa experiente;
ser isolado, evitando o transito de pessoas não envolvidas com os trabalhos. Os alpinistas industriais chamam isso de “Zona de Exclusão”. Alguém deverá ficar de vigia permanentemente, pois tudo o que acontecer ao redor do PA pode influenciar de maneira direta ou indireta sua segurança (ex: vazamento de vapores corrosivos nas proximidades, funcionamento de equipamentos que emanam caloria ou projetam materiais particulados, trânsito de pessoas, quedas de rocha, etc).

Os pontos de ancoragem podem ser classificados em Estruturais, Naturais e Artificiais.
Ancoragem Estrutural: Como o nome sugere, são os mais robustos e resistentes e devem ser nossa principal opção quando disponíveis. Eles formam estruturas dimensionadas para suportar grandes cargas, como vigas e colunas de telhados, construções pré-montadas, etc. É conhecido também como Ponto Bomba (alusão ao termo “à prova de bomba”).

Ancoragens estruturais
Ancoragem Natural: Rochas grandes, maciças, sem fissuras ou trincas ou ainda árvores grandes e sadias, localizadas em solo firme e estável. A base do tronco deve ser preferencialmente o ponto escolhido por ser o mais resistente. CUIDADO! Nem sempre a árvore que parece sadia está sadia… pode estar oca por dentro devido a ação de doenças, cupins, brocas, etc.

Ancoragem Natural
Ancoragem Artificial: Muito comum em escalada e alpinismo industrial, são instaladas em estruturas metálicas, rochas ou concreto, utilizando pinos “P”, chapeletas, olhais, parabolt´s ou spit´s. Devem ser utilizadas no mínimo em pares, através da técnica de equalização ou auto-equalização. PARE DE SER MIJÃO e confie nesse tipo de ancoragem! Desde que instalada corretamente em um local bem avaliado, a carga de ruptura varia entre 15kN e 22kN. Caso ela esteja em área industrial, é obrigatório que o dimensionamento tenha sido feito por um Engenheiro (para uso por uma ou mais pessoas).

Ancoragens artificiais.
Recomendo a visita ao site abaixo para ter acesso a maiores informações sobre a forma de instalação, carga de ruptura e outras dicas importantes sobre esse tipo de ancoragens:
Considere sempre o efeito alavanca, pois pode potencializar as forças atuantes no PA:






ancoragem na base e no topo e o efeito alavanca
Como pode ver, vigas, colunas, rochas grandes e estáveis, árvores grandes e sadias entre outros, podem nos servir como excelentes pontos de ancoragem. Para esses casos basta instalar cada corda através de fita ou um nó próprio diretamente na ancoragem (sempre usar proteção para cantos vivos). O PA não exige backup, mas as cordas sim.
Mas, o que é backup?
Damos esse nome a uma ancoragem adicional que entrará em função de forma automática caso a ancoragem principal falhe, qualquer que seja o motivo. É EXTREMAMENTE IMPORTANTE QUALQUER SISTEMA DE ANCORAGEM SEGURO (S.A.S) POSSUIR REDUNDÂNCIA, OU SEJA, UM PONTO ADICIONAL (BACKUP) CASO O PRINCIPAL FALHE. Por mais bem avaliado que seja o PA, fatores externos (muitas vezes imprevisíveis) podem afetar a segurança, portanto garanta sempre “uma segunda chance” montando um SAS.

ATENÇÃO:
Em um resgate real, após a análise sistemática de vários fatores (gravidade dos ferimentos da vítima, logística, local de difícil acesso, etc…) a corda de segurança pode ser eliminada, o que resultará em um resgate mais rápido. Porém, tenha em mente que caso ela falhe, não haverá segunda chance…
Para compreender essas regras com mais clareza, vamos ilustrar:
Se o ponto de ancoragem (PA) for estrutural (PB ex: vigas e colunas em concreto ou aço), então não faz sentido você fazer backup da ancoragem, pois é improvável que ela falhe ainda que seja uma operação de resgate em altura, com grandes forças envolvidas. Nesse caso o interesse maior serão as cordas e fitas de ancoragem, que deverão ser duplas (linha principal e linha de segurança ou backup). A linha principal é a que sustenta o socorrista, sendo controlada por um freio, preferencialmente de bloqueio automático; a linha de segurança entrará em uso caso a principal falhe, estando ancorada ao socorrista através de um trava quedas ou outro freio automático (nesse caso controlado pela equipe de apoio). Esse é o padrão que considero o mais seguro, utilizado por alpinistas industriais e equipes de resgate técnico.

rapel com corda principal e corda de segurança
E se não houver ponto de ancoragem estrutural disponível?
Exemplo: capotamento de veículo em ribanceira com inclinação de 70º. Não existe ponto de ancoragem estrutural, apenas árvores de médio porte. E agora? Ferrou? Não, não, não. Deveremos redundar além das cordas, os pontos de ancoragem pois quem inspecionou os PA´s entendeu que não são confiáveis caso sejam utilizados isoladamente. Portanto pelo menos duas árvores deverão ser utilizadas, através de uma das seguintes técnicas: Ancoragem Equalizada, Auto-Equalizada ou em Série.
Ancoragem Equalizada: é quando a corda está ancorada à dois PA´s ao mesmo tempo, tendo o peso da carga dividido por igual entre eles. Desvantagem: a corda deverá estar alinhada perfeitamente para que ocorra essa divisão por igual; caso o eixo mude um pouco a direita ou à esquerda, um dos pontos ficará sobrecarregado e outro ficará sem carga. Na ilustração utilizamos o Nó Orelha de Coelho.
Obs: as ilustrações dos Nós são meramente instrutivas. Para saber como fazer o nó corretamente clique sobre o nome do mesmo.

ancoragem EQUALIZADA com Nó Coelho
Observações:
Para efeitos didáticos essa ilustração mostra apenas a corda principal. A corda de segurança poderá ser instalada utilizando os mesmos critérios e pontos de ancoragem;
O ângulo formado pela equalização deve ser o menor possível, do contrário haverá sobrecarga nos pontos e não a divisão como esperado, conforme abaixo:
0º = não há divisão de carga
15° = 50% para cada ponto
90º = 70% para cada ponto
120º = 100% para cada ponto, ou seja,
NÃO FAZ SENTIDO, POIS NÃO ESTARÁ EQUALIZANDO!
acima de 120% possibilidade de sobrecarga e falência do SAS.
Ancoragem Auto-equalizada: como o próprio nome diz, funcionará como acima, porém a divisão da carga entre os pontos de ancoragem ocorrerá de forma automática. É o mais recomendado, pois funciona independente da mudança do eixo de tração da corda. Note que é utilizado o mesmo nó, porém ao invés das alças serem instaladas diretamente aos pontos de ancoragem, passamos unicamente uma das alças (a maior) e utilizamos a menor com um mosquetão para backup e auto-equalização.

ancoragem AUTO EQUALIZADA com nó coelho
Também é possível montar uma ancoragem auto-equalizada utilizando fitas, porém é obrigatório fazer a alça de segurança, pois ela funcionará como um backup caso um dos pontos falhe:

ancoragem AUTO EQUALIZADA com fita
Ancoragem em Série: O ponto de ancoragem principal pode estar acima ou abaixo do backup, porém é obrigatório ambos estarem alinhados entre si para evitar o efeito pêndulo caso ocorra falha no ponto principal aumentando drasticamente o fator de queda. É evidente que o backup deverá ser mais resistente que o ponto principal, pois se este falhar o backup deverá suportar o peso da carga e o pequeno fator de queda resultante. Na ilustração da esquerda o ponto principal é o inferior e o backup está acima; na direita o principal está acima e o backup está abaixo, utilizando um nó Borboleta (nó indicado para esse caso, pois não encavala quando tracionado em direções opostas).

ancoragens em série
Uma questão importante: e se as vítimas estiverem mais à direita ou à esquerda do sentido de descida, poderá haver dificuldade em acessá-las. Para resolver esse pequeno contra-tempo você precisará utilizar um Desvio.
A principal função de um Desvio é deixar a corda alinhada com o sentido de descida quando o SAS (sistema de ancoragem seguro) está em outro ponto, ou ainda desviar a corda de enroscos ou cantos-vivos.

SAS ancoragem equalizada com nó Coelho
Lembre-se que quanto menor for o ângulo formado no desvio mais carga será transferida para ele; quanto maior for esse ângulo, menos carga. O ideal é que se forme ângulo de 120º ou maior, conforme ilustração acima.
Muito bem! Vamos acrescentar mais um item na ocorrência utilizada como exemplo: considerando que a ribanceira possui risco de queda, todos os socorristas que trabalharem próximo de sua borda deverão estar ancorados em uma linha de vida. Observe a ilustração abaixo:


linha de vida sem fracionamento
São três socorristas para a mesma linha de vida. Caso um deles caia, os demais serão puxados devido ao deslocamento da corda para baixo. Problema? Sim. Mas temos a solução! O Fracionamento!
Fracionamento é quando uma corda já ancorada em um SAS necessita ser “re-ancorada” para individualizar partes para cada pessoa, aliviar o peso da corda quando o vão livre é muito alto ou ainda para evitar que tenha contato com cantos-vivos. É uma técnica muito utilizada por equipes de alpinismo industrial, resgate técnico e espeleologia. Veja como ficaria a linha de vida correta:


linha de vida com fracionamento
Para fazer os fracionamentos utilizamos o Nó Borboleta, pois não encavala quando tracionado em direções opostas; o Nó Oito Duplo funcionaria também, porém perderia a simetria pois iria torcer se submetido a cargas em direções opostas. Perceba a diferença: cada socorrista utiliza uma parte da linha de vida de forma individual, e, caso sofra queda, não irá interferir nos demais. Em espeleologia o uso está mais associado à necessidade de livrar a corda de cantos vivos e também permitir que mais de um espeleólogo possa descer na mesma corda, evitando a sobrecarga no SAS principal:

Fracionamento em cavernas
Algumas equipes de resgate têm o costume de utilizar um cordelete com o nó Prussik em ancoragens, tendo duas principais funções: aliviar a carga do nó de ancoragem (geralmente um nó Oito Duplo) e servir como um “fusível”, avisando a ocorrência de sobrecargas no SAS antes que esse falhe. Deverá haver uma folga entre o Nó Prussik e o Nó Oito Duplo, de forma que toda a carga seja distribuída entre os cordeletes, mas deve ser mínima, pois caso o cordelete falhe, resultará um Fator de Queda baixo. Essa técnica é conhecida como Ancoragem Simples.

Ancoragem Simples com Nó Prussik
Para encerrar esse post, indico um ótimo site para consulta sobre esse tema – o da empresa Dois Dez, especializada em sistemas de proteção contra quedas.